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Epopéia II

I

Eu deixo cair no chão
o resto da cinza de cigarro

II

Eu deixo a mochila no carro
e corro prum canto
vazio, com grama, sem gente
Eu quero ficar frente a frente
com a minha cabeça
e eu quero que cresça
essa Poesia dentro de mim
e que permaneça

III

Eu deixo você me amar
sem pedir nada em troca
Eu deixo e você provoca
até eu franzir a testa
cabou a festa, me solta
e volta, e toca, e chega
Derreto que nem manteiga
e reclamo porque te amo
E pergunto por que te chamo
sempre assim, do nada

IV

Decido
que estou
cansada

V

Eu deixo cair o sol agora
porque eu sei que ele se levanta
em algum momento enquanto eu tento dormir

Mal vejo a hora de partir
de dizer adeus à Realidade
de dizer a Deus dessa cidade que me limita
porque acha que o diferente é perigo
coisa do Inimigo, sei lá como se diz

VI

Eu deixo você feliz
eu sei que sim, eu sei que sempre
que você se chateia, vai pro meu jardim
a arranca as flores como para mostrar
as sete cores
trancadas
a sete chaves
nesse teu peito

Porque não é todo mundo que
vê o teu peito e que tem o direito
de te colorir
Eu tenho porque te amo
e porque declamo versos bobos
e firo o meu orgulho
Eu amo porque mergulho de cabeça
nessa besteira
e você se prontifica a alimentar
a minha Estupidez

VII

Eu deixo a luz acesa
do lado da cama
porque a qualquer instante
eu posso tirar um livro da estante
eu posso pensar num soneto
já que sono, eu não penso nem tenho

Eu deixo a luz cortar meu corpo
e dividi-lo em dois
Eu durmo porque depois
acordo com o tilintar da taça de vinho
que bebo sozinho
no escuro do meu quarto
do meu ninho

VIII

Eu deixo o sol nascer, assim como o deixei partir
Sabendo que ainda hoje ele morre
porque tudo é breve, porque o tempo corre

IX

Eu deixo porque já cansei de impedir
quem sou eu para te distrair?
Vai, voa com o vento e volta com a certeza
de que o almoço tá na mesa - porque ele sempre vai estar

Afinal o que é o amor se não a eterna fidelidade
ao Inconcreto, ao Surreal

O que é o amor, afinal?
Uma armadilha que renasce a cada olhar disfarçado
A procura de razão para ser uma pessoa boa
Se não o Silêncio ecoa e a gente se vê
sem verdades,
sem mistérios,
sem critérios pra medir a vida
sem medida pra passar as tardes

X

Eu deixo os sentidos atentos
que o sono é leve e eu não quero que seja pesado
Deixo os pés (pre)parados
para correr d'um pesadelo
E seja o que Deus quiser

Deixo o fio de cabelo esbranquiçar
que agora eu sou Mulher
Eu sou toda verdade porque sou toda coração
(sem intertextualidade aqui. coração e pronto)

XI

Eu deixo de ser me nina

XII

Eu deixo meu rosto tonto
Sorver do mel que a noite escura
exala e se mistura
com estrela e céu

E viva a vida insone olhando pro telefone
Esperando um tremelique, um barulhinho, um sinal
Qualquer coisa que justifique a ausência de interesse nesse
Festival de cores cálidas
de caras pálidas

E viva os anos mortos
Que eu recordo em fotos que ainda eram reveladas
ao invés de vê-las no computador

XIII

Eu deixo o eixo torto
Porque eu vou me inclinando
pra um aborto espontâneo
das idéias que vem em mente

Eu durmo no papel
e acordo na manhã
E a cor da minha cama
é transparente

XIV

Eu deixo você surgir, às vezes
no meio da minha cantiga
Porque não quero briga
só quero você

Seja lá quem você for
eu me permito pensar

nos haikais japoneses
no sotaque dos ingleses
no bricabraque das morenas

Eu me vejo em tantas cenas
Que me perco
na minha própria imagem
sem ação

XV

E, por fim, eu deixo
estampado nesse verso
Todo o meu mundo submerso e novo

A voz de Deus é a voz do povo
e a minha voz é só minha
Singular

Ela fica
mesmo feia, ela fica na veia
porque essa sou eu
essa é a Poesia que Eu Sou,

Esse é o poema que é seu

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amor-te

eu passo o passado pra outra medida trancada num fardo de fera e ferida de fato, a vida é a morte esquecida o desejo de volta é o desejo de ida. meu passo é pesado na outra medida não grita nem cala apenas valida a parte da fala que foi corroída: te pertenço morta te pertenço viva. "A nossa  vida  é a mesma coisa que a  morte  -  n'outra medida ." - Cecília Meireles

desp(ed)ida

os estrondos estão prontos para estourar estalos tontos tanto que nos calamos em sussurros, respiros sorrisos, vícios pontilhismo impressionista que a gente precisa em metonímia acasos, pancadas, socos, chutes, um livro de poesia min(h)a - duas taças de argentino troglodita floral sou xiita de amor tal que tardo no retorno ao morno ninho ao murmurinho do meu endereço porque o fogo etílico da cafeína me ensinou - em sina a compensar com pesar uma ausência inata de flores no meu jardim de ímãs na minha geladeira